CITAÇÃO:
“Sim, essa era Veneza, a insinuante e suspeita beldade,
mistura de conto de fadas e de armadilha para caçar forasteiros, essa cidade em
cuja atmosfera pútrida outrora vicejavam luxuriantemente as artes e que
inspirava aos músicos melodias embaladoras, lascivas, entorpecentes.”
RESENHA:
A Morte em Veneza foi uma novela publicada pelo escritor
alemão Thomas Mann no ano de 1912.
A obra constitui-se como um magnânimo trabalho de
linguagem realizado por um dos maiores romancistas do século XX e
possibilita-nos diversas camadas de leitura. Nesta resenha, apresentaremos uma
leitura superficial da narrativa e uma leitura filosófica, sem esgotar outras
possibilidades de interpretação. Para introduzirmos o livro, é importante
destacarmos que ele é dividido em cinco capítulos e representa uma “novela” no
sentido estrito que esta palavra tem para a literatura alemã: uma obra que traz
o “novo”, o inusitado. Faz-se necessário, por isso, discorrer sobre os acontecimentos
singulares de cada parte da obra.
No primeiro capítulo, Gustav von Aschenbach sai para um
passeio e, ao prenúncio de um temporal, estaca-se em frente a um cemitério para
aguardar o bonde. Neste momento, acaba por deparar-se com um tipo estranho às
bordas da escadaria do mortuário: “De estatura mediana, macilento, imberbe, o
homem tinha o nariz singularmente achatado. [...] o chapéu de palha, de abas
largas e retas, que lhe cobria a cabeça, dava-lhe a aparência exótica de quem
vinha de longe” (MANN, 1912, p. 12). Este é, portanto, o primeiro prenúncio de
morte que aparece no livro e ressurgirá diversas vezes durante a narrativa.
No segundo capítulo, o narrador em terceira pessoa
apresenta o protagonista como um escritor de meia-idade com diversas obras
publicadas, possuidor de grande intelecto. No entanto, abalado com os últimos
acontecimentos que têm acometido a sua vida, Aschenbach é tomado por uma
“vontade de viajar” e, por isso, decide conhecer novos lugares, sair em busca
do novo. Assim sendo, sai em viagem para Pula, na costa austro-húngara, mas, em
seguida, acaba decidindo seguir para Veneza. A partir daqui, essa viagem é
descrita em riqueza de detalhes e o leitor é convidado a fazer esse caminho
junto de Aschenbach – somos transportados para a Itália do século XX, com seus
gondoleiros e seu vaporetto.
No terceiro capítulo, o protagonista encontra-se em um
hotel veneziano e, ao observar os outros hóspedes, depara-se com uma família
aristocrática de poloneses: uma criada, a mãe da família, suas filhas e seu
filho – o jovem Tadzio, o qual Aschenbach considera de uma beleza divina,
escultural e inigualável. Embevecido e
inebriado com a beleza do jovem de 14 anos, ele passa a persegui-lo em suas
idas ao mar e à cidade e a observá-lo nos momentos de refeição do hotel. No
entanto, nesse meio-tempo, surge outro prenúncio de morte: Gustav von
Aschenbach, durante um passeio pela cidade, influenciado pelo calor e pelo
tempo úmido, sente-se mal e é contaminado pelo odor pútrido da cidade de
Veneza. Por consequência, impactado, decide deixar a cidade, mas, por conta do
destino, vê seus planos frustrados e precisa retornar para o hotel. Isto não
deixa o personagem desanimado, pelo contrário: era pesaroso deixar a cidade
porque, desta forma, deixaria de poder contemplar o jovem Tadzio, por quem se
apaixonara.
O quarto capítulo, por sua vez, é essencialmente
filosófico: Aschenbach continua a contemplar Tadzio e faz reflexões sobre
elementos apolíneos e dionisíacos.
No capítulo final, deparamo-nos com mais um prenúncio de
morte: Gustav von Aschenbach nota que diminui-se o número de turistas naquela
área, mesmo em tempos de alta temporada. Como consequência disso, ele deixa de
ouvir o seu idioma, alemão, e passa a ouvir apenas línguas estrangeiras dos
turistas que restaram naquela região. Além disso, o governo local passa a
higienizar as ruas com produtos químicos e instrui os locais a manterem as
aparências de normalidade para não afugentar os visitantes. No entanto, apesar
das desconfianças, do medo que lhe aparece como pano de fundo e dos fatos, o
protagonista, embriagado pelo amor platônico que tinha por Tadzio, parece não
notar o que acontece à sua volta – o que traz consequências letais para o
personagem.
Assim sendo, entre as leituras possíveis para este texto
temos uma opção de leitura superficial: um escritor de meia-idade, em busca do
novo, decide sair em viagem e, na cidade de Veneza, depara-se com um rapaz de
beleza escultural – Tadzio – por quem se apaixona.
Porém, se realizarmos uma leitura mais qualificada e mais
profunda, observaremos que a narrativa traz um conflito importante – o qual é
explorado filosoficamente ao longo do texto, através das atitudes e dos
devaneios de Aschenbach. Este conflito se dá entre o elemento apolíneo e o dionisíaco,
pelos quais todo artista é influenciado: Veneza, por exemplo, é bela por um
lado (apolínea), e podre por outro – por conta do siroco que cheira mal e seus
prelúdios de morte (dionisíaco). Além disso, Aschenbach busca eternizar a
beleza de Tadzio através da escrita em um sonho apolíneo de beleza e, por isso,
persegue o jovem. No entanto, é justamente essa obsessão, ironicamente, que o
leva a embriagar-se e diluir-se no dionisíaco.
CURIOSIDADES:
·
Nasce o escritor Paul Thomas Mann em 1875, filho
de uma brasileira: Júlia da Silva Bruhns, casada com o alemão Thomas Johann
Heinrich Mann;
·
Em 1911, aos 36 anos, o autor concebe "A
Morte em Veneza" durante uma estada no Lido de Veneza;
·
O personagem Tadzio foi inspirado numa pessoa
real, um jovem nobre polonês que Thomas Mann encontrou numa viagem a Veneza,
exatamente no hotel onde se passa a história;
·
Por conta da chegada de Hitler ao poder, Thomas
Mann exilou-se na Suíça e nos Estados Unidos;
·
Aos 80 anos, estabelecido em Zurique – na Suíça,
o autor morre.
AVALIAÇÃO DA LEITURA E DO LIVRO:
A leitura é curta e podemos finalizá-la rapidamente, porém,
é de intensa densidade filosófica. Portanto, constitui-se em um livro indicado
para o leitor que vai além e interessa-se por narrativas mais profundas,
intimistas e simbólicas. Assim sendo, a obra apresentará dificuldades de
intelecção para leitores iniciantes. No entanto, todos os que se dispuserem a
explorá-la atentamente e procurarem por materiais de apoio – como críticas
qualificadas e resenhas – se surpreenderão com o que o texto tem a oferecer e
com as diversas camadas de interpretação existentes.
A linguagem é rebuscada e apresenta vocábulos pouco usuais,
no entanto, não é exagerada: o narrador em terceira pessoa parece utilizar-se
de um linguajar que é próximo ao que Aschenbach utilizaria em seus pensamentos,
visto que o personagem é um escritor de alto intelecto. Isto aproxima o leitor
e o protagonista.
Além disso, não há como deixar de mencionar que Thomas Mann
faz uso de riqueza de detalhes para expressar-se acerca da paisagem da Itália e
das características dos personagens com os quais Aschenbach relaciona-se – o
que traz extraordinária concretude ao texto.
Por fim, A Morte em Veneza é uma obra-prima a qual se faz
essencial na lista de leituras dos leitores
que são atentos e interessados em uma narrativa densa, profunda e que
tem muito mais do que o aparente superficial a oferecer.
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