Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881): “Memórias do Subsolo” (1864)

CITAÇÃO:

“Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos.”




RESENHA:

Pequeno romance publicado no ano de 1864, a obra foi escrita enquanto Dostoiévski acompanhava sua primeira esposa na cabeceira de morte, vitimada pela tuberculose. O livro é dividido em duas partes: “O subsolo” e “A propósito da neve molhada”. Pode-se dizer que os escritos funcionam como um diário onde o narrador registra, inicialmente, sua visão de mundo e, posteriormente, recortes de acontecimentos do passado que corroboram suas ideias filosóficas apresentadas na primeira parte.
Em “O subsolo”, conhecemos o narrador-protagonista. Ele se apresenta como um homem doente na faixa dos quarenta anos; um funcionário público que deixou seu emprego por conta de uma modesta herança que houvera recebido. O “homem do subsolo” – que não diz seu nome sequer uma vez ao longo do romance – destila, ao longo das páginas, toda sua insatisfação e suas decepções em relação à vida. Estamos diante de um personagem perturbado, que diz esforçar-se para ser um homem mau e temido, e se contradiz: ora vangloria-se, por exemplo, por possuir um intelecto acima da média, ora mostra-se detentor de uma autoestima profundamente abalada. Além disso, ele frequentemente muda de ideia, volta atrás no que diz, confessa suas mentiras e declara seu prazer em sentir dor.
Percebemos, portanto, que o homem do subsolo não é verdadeiro para com a sociedade, a qual despreza, e não é verdadeiro para consigo mesmo: tem dificuldade para definir objetivos – os quais não são apresentados claramente em momento algum da trama – e lhe é penoso seu processo de autoconhecimento. Isto pode caracterizar a obra como psicológica, visto que esta primeira parte trata basicamente destes conflitos pelos quais passa a psique humana. Assim sendo, é interessante observar que o livro dialoga com a obra posteriormente produzida por Freud e, ademais, Nietzsche era voraz leitor de Dostoiévski – o que evidencia a profundidade da análise psicológica que o escritor se propôs a fazer.
Em “A propósito da neve molhada”, o narrador-protagonista apresenta recortes de fatos ocorridos em seu passado. Deparamo-nos com outros personagens como Fierfítchkin, Símonov, Trudoliubov e Zvierkóv – ex-colegas de escola com os quais o homem do subsolo tenta manter uma relação social saudável, mas fracassa: ele faz uma tentativa forçada de socializar com o grupo comparecendo a um jantar de amigos para o qual não foi convidado, assim sendo, acaba por se tornar uma presença indesejada. Zvierkóv, que se mostra como uma espécie de líder do grupo, é o total oposto dele, visto que é bem sucedido socialmente e é descrito como um homem que prioriza a ação em vez do pensamento. Em certa altura do jantar, todos passam a ignorar a presença do homem do subsolo – que se sente arrasado e inconformado quando percebe o quão insignificante é para os que o conhecem.
Por fim, é mister citar o momento em que o narrador acaba, depois do jantar entre “amigos”, em uma casa noturna clandestina e conhece a personagem Liza – uma prostituta com a qual se relaciona. Destaca-se, nesta parte da narrativa, o longo discurso que o homem faz com vistas a convencer Liza a largar a vida fácil, mostrando-se sempre superior. Ele evidencia a sua mesquinhez quando confessa não ter aberto os olhos da prostituta por querer o bem dela, mas pela mera oportunidade de sentir-se superior – o que ela destrói, mais tarde, ao visitá-lo em sua casa e atestar que, na verdade, ele é pobre e veste-se mal.
O homem do subsolo, no fim das contas, representa as vozes de todas as mentes confusas e perdidas, imersas nesta vida em sociedade da qual somos todos meros reféns.

CURIOSIDADES:

·         A obra é considerada, por alguns, como uma das primeiras representantes do movimento existencialista;
·         O livro, com cerca de 150 páginas (a depender da edição) é pequeno quando comparado ao tamanho de outras obras-primas de Dostoiévski;
·         O Homem do subsolo tornou-se uma influência para diversas personagens criadas em trabalhos posteriores. Um exemplo disso é Nikolai Levin, que é uma personagem do romance de Leo Tolstoi, Anna Karenina;
·         Dostoiévski teve uma infância humilde, perdeu a mãe muito cedo e o pai fora assassinado pelos próprios criados devido às suas atitudes violentas causadas pela bebida. Foi quando soube deste fato que o autor, com apenas 17 anos, sofreu sua primeira crise de epilepsia;
·         Grande parte do que é relatado nos livros foi vivido pelo próprio autor.

AVALIAÇÃO DA LEITURA E DO LIVRO:


A leitura é curta, entretanto, densa. É uma obra que pode não agradar a todos os leitores, visto que é perpassada por um caráter intimista e filosófico. A linguagem, por sua vez, é rebuscada – com a escrita direcionada à segunda pessoa do plural. Além disso, o narrador-protagonista traz diversos fatos históricos e culturais da Rússia do século XIX, os quais são de difícil compreensão para quem lê edições que carecem de comentários e notas de rodapé. No entanto, o livro pode proporcionar uma experiência prazerosa para os que se propuserem a realizar uma leitura atenta e aprofundada – isto exigirá concentração e paciência.

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